"A primeira coisa é você não enganar a si mesmo; e ninguém você engana com mais facilidade do que a si mesmo."
(Richard Feynman)
Não entendemos a realidade diretamente, mas intermediada por discursos, preconcepções e filtros – óculos ideológicos que determinadas disciplinas chamam de modelos.Modelos conceituais explicam para nós a realidade mesmo quando não pensamos neles; na verdade, sua eficácia está ligada ao fato de que determinados modelos nos parecem tão naturais que não requerem reflexão. Cremos que estamos olhando o mundo diretamente, e esquecemos que estamos usando os óculos de determinada ideologia.
Como com outras ideologias antes dele, no capitalismo está embutido um modelo de interpretação da realidade – um modelo que nos vende uma determinada noção do que é natural no ser humano, do que é justo nas relações entre as pessoas e do que é desejável nesta vida.
O pressuposto mais fundamental do modelo capitalista é o imperativo da oportunidade, ou seja, a dupla crença de que [1] nenhuma pessoa racional irá desperdiçar uma oportunidade que envolva uma recompensa, e de que [2] quando indivíduos não desperdiçam oportunidades legítimas a coletividade inteira sai ganhando.
O capitalismo delineou, com esse dogma, o projeto do homem econômico, que toma decisões livres e racionais com base num único item de fé: oportunidade é valor. Oportunidade é uma coisa inerentemente boa. Oportunidade é um imperativo categórico. A uma boa oportunidade não se diz não.
Para o capitalismo, o modo de operação mais fundamental do ser humano é a asserção: ser gente humana é dizer sim a toda boa oportunidade. Ser gente é procurar e adotar modos de maximizar os nossos retornos pessoais, e nisso se explica que gastemos tempo, organização e recursos de modo a aumentar a produtividade da nossa mão de obra e da dos nossos subordinados.
Nessa visão de mundo não só o mundo está cheio de oportunidades, mas abrir mão delas é um enorme contrassenso. Se você tiver como aumentar a sua produtividade e por conseguinte os seus lucros, é isso o que você naturalmente vai querer fazer. Diante de ofertas de trabalho, você vai aceitar a que lhe der maior retorno pelo esforço empregado. Se puder consumir mais, você não vai querer consumir menos. Se puder ter legitimamente carros, amantes e bens, você não vai querer ser um monge franciscano. Se puder calçar couro alemão, não vai querer andar descalço. Se estiver de posse de um anel mágico que concede ao seu portador poderes ilimitados, não vai querer jogá-lo dentro do único vulcão na terra capaz de destruí-lo. Se puder morder o fruto da árvore que o deixará em pé de igualdade com Deus, não vai pedir em vez disso uma salada de rúcula com tofu.
O modelo capitalista crê que o homem é livre para escolher qualquer coisa,menos deixar passar uma oportunidade. Nesse modelo, oferta equivale a demanda: a pessoa que pode se beneficiar de uma determinada configuração de circunstâncias vai invariavelmente querer apropriar-se desses benefícios.
Como resultado, o capitalismo não tolera e não reserva espaço para o indivíduo que sabe por alguma razão abdicar de uma possibilidade legítima de multiplicar os seus retornos. No modelo capitalista quem resiste à oportunidade é um não-agente que não deixa qualquer marca na narrativa oficial. Esse indivíduo inadmissível não age racionalmente, pelo que não só não contribui e não se beneficia: é para todos os efeitos uma não-pessoa.
O homem não-econômico, que existe à margem do mercado, é desconsiderado pelo capitalismo e por isso o capitalismo pede que o desconsideremos por completo. Mesmo que exista como possibilidade, ele não é o cara que você vai querer ser. O fundamentalismo de oportunidade não tolera alternativas.
O modelo capitalista não exige apenas que você deixe de acreditar num modo de vida à margem do mercado. Ele pede que você acredite ativamente que o regime da oportunidade beneficia não apenas os indivíduos empreendedores, mas a sociedade como um todo – e, tudo somado, este é um salto de lógica e de fé muito maior.
Na história como contada pelo capitalismo, a coletividade inteira se beneficiará se nenhum indivíduo deixar passar uma oportunidade. Se você tirar vantagem, a vantagem se devolverá magicamente ao mundo. É um dogma improvável mas conveniente: nada é mais confortador do que imaginar que os outros se beneficiarão do meu egoísmo. Nesse modo de ver o mundo minha mesquinhez é normalizada. Sinto-me autorizado para tirar vantagem de quaisquer cenários: minha fé neutraliza a minha canalhice, confortando-me com a crença de que outros benefícios (alguns dos quais não saberei nem ao menos prever) brotarão espontaneamente sociedade afora. Pode parecer que estou pensando só em mim, mas de algum modo misterioso você está ganhando também.
É tudo uma lorota, evidentemente. Na prática o regime capitalista acentua as desigualdades em vez de distribuir a equidade, mas essas discrepâncias são escondidas debaixo do dogma da oportunidade. É revelador que o capitalismo prefira ser chamado de liberalismo econômico; ele quer estar associado não à desigualdade universal que ocasiona, mas à liberdade universal que apregoa. Na fantasia capitalista de um universo de agentes livres inteiramente cercados de oportunidades, ninguém além de você deve sentir-se responsável pela sua pobreza, pelo seu fracasso, pela sua inadequação. Não culpe o sistema, argumentam os defensores do sistema, porque as oportunidades estão aí.
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*Fonte: Trecho do Texto "O Custo da Oportunidade", de Paulo Brabo, publicado no site A Bacia Das Almas.
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