quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Amar o diferente...


"A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas que eles guardam para os poucos capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana dos quais só os diferentes são capazes. Não mexa com o amor de um diferente. A menos que você seja suficientemente forte para suportá-lo depois". 
(Arthur da Távola)





quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O custo da oportunidade

(Paulo Brabo)*

"A primeira coisa é você não enganar a si mesmo; e ninguém você engana com mais facilidade do que a si mesmo."
(Richard Feynman)

Não enten­de­mos a realidade dire­ta­mente, mas inter­me­di­ada por discursos, pre­con­cep­ções e filtros – óculos ide­o­ló­gi­cos que deter­mi­na­das dis­ci­pli­nas chamam de modelos.Modelos con­cei­tu­ais explicam para nós a realidade mesmo quando não pensamos neles; na verdade, sua eficácia está ligada ao fato de que deter­mi­na­dos modelos nos parecem tão naturais que não requerem reflexão. Cremos que estamos olhando o mundo dire­ta­mente, e esque­ce­mos que estamos usando os óculos de deter­mi­nada ideologia.

Como com outras ide­o­lo­gias antes dele, no capi­ta­lismo está embutido um modelo de inter­pre­ta­ção da realidade – um modelo que nos vende uma deter­mi­nada noção do que é natural no ser humano, do que é justo nas relações entre as pessoas e do que é desejável nesta vida.

O pressuposto mais fundamental do modelo capi­ta­lista é o impe­ra­tivo da opor­tu­ni­dade, ou seja, a dupla crença de que [1] nenhuma pessoa racional irá des­per­di­çar uma opor­tu­ni­dade que envolva uma recom­pensa, e de que [2] quando indi­ví­duos não des­per­di­çam opor­tu­ni­da­des legítimas a cole­ti­vi­dade inteira sai ganhando.

O capi­ta­lismo delineou, com esse dogma, o projeto do homem econômico, que toma decisões livres e racionais com base num único item de fé: opor­tu­ni­dade é valor. Opor­tu­ni­dade é uma coisa ine­ren­te­mente boa. Opor­tu­ni­dade é um impe­ra­tivo cate­gó­rico. A uma boa opor­tu­ni­dade não se diz não.

Para o capi­ta­lismo, o modo de operação mais fun­da­men­tal do ser humano é a asserção: ser gente humana é dizer sim a toda boa opor­tu­ni­dade. Ser gente é procurar e adotar modos de maximizar os nossos retornos pessoais, e nisso se explica que gastemos tempo, orga­ni­za­ção e recursos de modo a aumentar a pro­du­ti­vi­dade da nossa mão de obra e da dos nossos subordinados.

Nessa visão de mundo não só o mundo está cheio de opor­tu­ni­da­des, mas abrir mão delas é um enorme con­tras­senso. Se você tiver como aumentar a sua pro­du­ti­vi­dade e por con­se­guinte os seus lucros, é isso o que você natu­ral­mente vai querer fazer. Diante de ofertas de trabalho, você vai aceitar a que lhe der maior retorno pelo esforço empregado. Se puder consumir mais, você não vai querer consumir menos. Se puder ter legi­ti­ma­mente carros, amantes e bens, você não vai querer ser um monge fran­cis­cano. Se puder calçar couro alemão, não vai querer andar descalço. Se estiver de posse de um anel mágico que concede ao seu portador poderes ili­mi­ta­dos, não vai querer jogá-lo dentro do único vulcão na terra capaz de destruí-lo. Se puder morder o fruto da árvore que o deixará em pé de igualdade com Deus, não vai pedir em vez disso uma salada de rúcula com tofu.

O modelo capi­ta­lista crê que o homem é livre para escolher qualquer coisa,menos deixar passar uma opor­tu­ni­dade. Nesse modelo, oferta equivale a demanda: a pessoa que pode se bene­fi­ciar de uma deter­mi­nada con­fi­gu­ra­ção de cir­cuns­tân­cias vai inva­ri­a­vel­mente querer apropriar-se desses benefícios.

Como resultado, o capi­ta­lismo não tolera e não reserva espaço para o indivíduo que sabe por alguma razão abdicar de uma pos­si­bi­li­dade legítima de mul­ti­pli­car os seus retornos. No modelo capi­ta­lista quem resiste à opor­tu­ni­dade é um não-agente que não deixa qualquer marca na narrativa oficial. Esse indivíduo inad­mis­sí­vel não age raci­o­nal­mente, pelo que não só não contribui e não se beneficia: é para todos os efeitos uma não-pessoa.

O homem não-econômico, que existe à margem do mercado, é des­con­si­de­rado pelo capi­ta­lismo e por isso o capi­ta­lismo pede que o des­con­si­de­re­mos por completo. Mesmo que exista como pos­si­bi­li­dade, ele não é o cara que você vai querer ser. O fun­da­men­ta­lismo de opor­tu­ni­dade não tolera alternativas.

O modelo capi­ta­lista não exige apenas que você deixe de acreditar num modo de vida à margem do mercado. Ele pede que você acredite ati­va­mente que o regime da opor­tu­ni­dade beneficia não apenas os indi­ví­duos empre­en­de­do­res, mas a sociedade como um todo – e, tudo somado, este é um salto de lógica e de fé muito maior.

Na história como contada pelo capi­ta­lismo, a cole­ti­vi­dade inteira se bene­fi­ci­ará se nenhum indivíduo deixar passar uma opor­tu­ni­dade. Se você tirar vantagem, a vantagem se devolverá magi­ca­mente ao mundo. É um dogma impro­vá­vel mas con­ve­ni­ente: nada é mais con­for­ta­dor do que imaginar que os outros se bene­fi­ci­a­rão do meu egoísmo. Nesse modo de ver o mundo minha mes­qui­nhez é nor­ma­li­zada. Sinto-me auto­ri­zado para tirar vantagem de quaisquer cenários: minha fé neu­tra­liza a minha canalhice, confortando-me com a crença de que outros bene­fí­cios (alguns dos quais não saberei nem ao menos prever) brotarão espon­ta­ne­a­mente sociedade afora. Pode parecer que estou pensando só em mim, mas de algum modo mis­te­ri­oso você está ganhando também.

É tudo uma lorota, evi­den­te­mente. Na prática o regime capi­ta­lista acentua as desi­gual­da­des em vez de dis­tri­buir a equidade, mas essas dis­cre­pân­cias são escon­di­das debaixo do dogma da opor­tu­ni­dade. É revelador que o capi­ta­lismo prefira ser chamado de libe­ra­lismo econômico; ele quer estar associado não à desi­gual­dade universal que ocasiona, mas à liberdade universal que apregoa. Na fantasia capi­ta­lista de um universo de agentes livres intei­ra­mente cercados de opor­tu­ni­da­des, ninguém além de você deve sentir-se res­pon­sá­vel pela sua pobreza, pelo seu fracasso, pela sua ina­de­qua­ção. Não culpe o sistema, argu­men­tam os defen­so­res do sistema, porque as opor­tu­ni­da­des estão aí.





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*Fonte: Trecho do Texto "O Custo da Oportunidade", de Paulo Brabo, publicado no site A Bacia Das Almas.
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