segunda-feira, 22 de junho de 2015

Progresso...

(Rubem Alves)




O menino moderno, familiarizado com o computador, ficou curioso sobre como eram as coisas no trabalho do seu pai no tempo em que não havia computadores. O pai, entusiasmado com a súbita curiosidade do filho, pôs-se a campo para encontrar sua velha Olivetti portátil, amante esquecida, abandonada – e ele nem sabia ao certo onde ela estava. 

Depois de muito procurar, encontrou-a dentro de uma mala velha cheia de tranqueiras. Tirou-a da sepultura, limpou-a, conferiu as teclas e alavancas, e também as fitas metade preta e metade vermelha, colocando-a então de novo no mesmíssimo lugar sobre a mesa onde vezes sem conta eles estiveram juntos. 

_Como é que funciona, pai? – o menino perguntou. 

_É assim que funciona..., respondeu o pai. 

A seguir, colocou uma folha de papel sulfite no rolo, ajustou as margens e começou a “daquitilografar” (era assim que o meu pai falava) umas frases soltas. Ao ver a máquina em ação, o menino fez um “oh” de espanto: 

_Que máquina mais adiantada, diferente dos computadores. É só digitar as letras que o texto sai impresso...

O que me fez lembrar um texto divertidíssimo de Cortázar que se chama, se não me engano, “A história das invenções”. Só que tudo acontece não de trás para frente mas da frente para trás. 

A história começa num voo de supersônico de Nova York a Paris. Três horas. Aí os homens, inteligentes, pensaram que o prazer da viagem poderia ser aumentado se os aviões, em vez de voarem a uma velocidade acima da velocidade do som e a uma altura de quinze quilômetros, passassem a voar a uma velocidade de 400 quilômetros por hora a uma altura de três quilômetros. Assim poderiam ficar muito mais tempo longe do trabalho e ver os rios, bosques e vilas... 

E assim vai acontecendo a história das invenções, sempre ao contrário e sempre melhor... Até que, depois de muito progresso, a invenção dos navios a vela não poluentes e das bicicletas que fazem bem ao coração, os humanos inventam a mais fantástica de todas as invenções: eles inventam o “andar a pé”...



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Texto retirado do livro: Do universo à jabuticaba, de Rubem Alves.

sábado, 20 de junho de 2015

Palavras falsas...



"Todas as palavras, tomadas literalmente, são falsas. 
A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. 

Prestar atenção ao que não foi dito, ler entre as linhas... 

A atenção flutua: 
Toca as palavras sem cair em suas armadilhas. 
Sem ser por elas enfeitiçada. 

Cuidado com a sedução da clareza! 
Cuidado com o engano do óbvio."


(Rubem Alves - Do universo à jabuticaba)









quarta-feira, 17 de junho de 2015

Vivência...



"O saber não é nativo. 
Faz-se da experiência, que só amanhece para nós 
com a madureza dos anos."

(Rui Barbosa)







sexta-feira, 5 de junho de 2015

Já não vivo, só penso...


"Já não vivo, só penso.
E o pensamento é uma teia confusa, complicada,
uma renda sutil feita de nada:
De nuvens, de crepúsculos, de vento.

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.

Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,

ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços. "


(Fernanda de Castro, in "E Eu, Saudosa, Saudosa")




quinta-feira, 4 de junho de 2015

Cegueira

(Rubem Alves)


São as crianças que veem as coisas – porque elas as veem sempre pela primeira vez com espanto, com assombro de que elas sejam do jeito como são. Os adultos, de tanto vê-las, já não as veem mais. As coisas – as mais maravilhosas – ficam banais. 

Ser adulto é ser cego.




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Trecho do texto "Cegueira", publicado no livro "Do universo à jabuticaba" de Rubem Alves)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Psicanálise

(Rubem Alves)

Conversa na recepção: 

Conversa vai, conversa vem, digo que sou psicanalista. A moça entra em pânico, temerosa de que eu tivesse poderes para ver a sua alma.

“Eu já fiz terapia”, ela disse. “Mas agora estou resolvida.”

Pergunto: “Quando se deu o óbito?”.

Ela me olha sem entender. Óbito?

Explico: as únicas pessoas resolvidas que conheço estão no cemitério.




“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma 
sociedade profundamente doente.” 
[Krishnamurti]


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(Texto do livro "Do universo à jabuticaba", de Rubem Alves.)
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