segunda-feira, 23 de março de 2015

O calço da mesa

(Fabrício Carpinejar)


É muita sorte encontrar uma mesa manca no restaurante. Festejo o achado, ainda mais se estou acompanhado de minha mulher.

Não mudo de lugar, não peço ajuda do garçom, faço questão de sentar e apoiar os braços, com todo o meu peso, para determinar a inclinação. É sempre uma oportunidade para impressionar e mostrar para minha companhia que ajusto desequilíbrios e desafio desarmonias.

O perfeccionismo mata a cumplicidade. Casais se separam por intransigências mínimas acumuladas pelo tempo e nunca ditas.

Vejo a mesa manca como uma maneira sedutora de dar um recado: a imperfeição não me incomoda, conserto o mundo, estou disposto a enfrentar os altos e baixos de um relacionamento. É uma demonstração de simplicidade diante dos problemas. Não reclamo, não sinalizo desconforto, não arredo o pé dali. 

Com desinteresse ensaiado, tomo um guardanapo e enrolo a medida exata para formar um calço. Tenho o olhar clínico de um marceneiro, de um engenheiro das resmas de papel. Com uma rápida mirada, sei quantas dobras são necessárias para conter o desnível.

Minha esposa, comovida e surpreendida com o gesto, relaxa mais comigo, e percebe que pode estragar e não será abandonada, que pode adoecer e será amparada e protegida.





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Publicado na Revista Isto É Gente. Edição Bimestral. P. 34, Março 2015. Ano 15 Número 717. São Paulo (SP)

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